sexta-feira, 25 de março de 2011

A FILOSOFIA SEM SALVAÇÃO


BERNARDO CARVALHO
Da Reportagem Local

O americano Richard Rorty, 63, é um dos maiores expoentes da chamada "filosofia neopragmática" ou "pós-analítica".
Algumas de suas principais teses foram expostas no polêmico "A Filosofia e o Espelho da Natureza" (1979), onde atacava a idéia da mente como um espelho refletindo o mundo e as pretensões do pensamento metafísico a dar legitimidade ao conhecimento.
Rorty não acredita numa correspondência direta entre o pensamento e o mundo considera-se "antidualista, antiplatônico e antifundacionista" (é contra a idéia de que a filosofia paira acima da história e das práticas sociais e tem a função de fundar o conhecimento).
É absolutamente contra todas as teses essencialistas ou universalistas ("Não podemos procurar a salvação fora das práticas sociais", diz). Para ele, a filosofia (e por conseguinte a linguagem) deve ser, antes de mais nada, relativizada, colocada em contexto.
Professor da Universidade de Virginia (EUA), Rorty vem ao Brasil para uma conferência no dia 19, no Rio de Janeiro, dentro do projeto Banco Nacional de Idéias, cujo tema central é "O Relativismo Enquanto Visão de Mundo".
"Vou falar sobre as discussões entre os filósofos como eu, chamados de relativistas, e nossos críticos. Acho que relativismo é um termo errado para definir a minha filosofia, a de Derrida e a do pragmatismo americano de John Dewey, por exemplo. Não devemos nos descrever como relativistas, porque esse termo aceita premissas platônicas, que devemos rejeitar", diz o filósofo, que deverá debater com Luís Eduardo Soares e José Arthur Giannotti.
De seus livros mais significativos, apenas dois foram traduzidos para o português, em Portugal: "Filosofia e o Espelho da Natureza" e "Contingência, Ironia e Solidariedade".

Folha — Em "Filosofia e o Espelho da Natureza", o sr. vai contra a epistemologia e a metafísica. Que tipo de filosofia ainda é possível hoje?

Richard Rorty  A filosofia não deveria ser vista como uma disciplina científica, com uma função social a servir. Os filósofos são pessoas que tentam juntar novos desenvolvimentos culturais com regras familiares aceitáveis. Tentam reconciliar ética cristã com ciência newtoniana, por exemplo, ou iluminismo e racionalismo com uma perspectiva darwiniana da origem humana. Sua função é encontrar maneiras de reempacotar nossas crenças, de forma a que as novas crenças possam coexistir com as velhas.

Folha — No mesmo livro, o sr. diz que os filósofos que mais admira vêm de uma "tradição terapêutica". O sr. poderia explicar o que quer dizer com "uma filosofia terapêutica"?
Rorty  O termo terapia filosófica está associado, em inglês, a Wittgenstein, que era especialista em dizer que muitos dos problemas tradicionalmente discutidos em livros de filosofia simplesmente não precisam ser discutidos. São resultado de uma obsessão neurótica em relação a certos conceitos dispensáveis. Filosofia terapêutica é uma concepção de filosofia onde você tenta se livrar das muletas, da escolástica, das questões cujos temas provocam debates infindáveis e infrutíferos.

Folha — O sr. é um admirador de Heidegger. Qual seria o papel dele dentro dessa "filosofia terapêutica"?
Rorty  O trabalho inicial de Heidegger era uma polêmica contra Descartes e Kant, tentando colocar de lado a idéia que os dois faziam do que é o ser humano e os problemas filosóficos artificiais criados pelas imagens cartesianas e kantianas. Penso em Heidegger como um filósofo que fez, à sua maneira, o mesmo que Wittgenstein e Dewey fizeram.

Folha — Como o sr. explica a recente redescoberta e reavaliação de John Dewey (filósofo do pragmatismo americano, 1859-1952) pela filosofia?
Rorty  Acho que ele foi eclipsado por Marx. Os dois eram discípulos de Hegel e concordavam com o mestre contra Kant. Mas por um longo período, durante o tempo em que o comunismo pareceu ser uma opção possível, as pessoas pensaram que, se quisessem um ponto de vista antikantiano e anti-hegeliano, o lugar para achá-lo era em Marx. Hoje, com a queda do comunismo, Dewey parece melhor, surgindo como uma versão naturalizada e darwinizada de Hegel.

Folha — Há algum futuro para a filosofia num mundo onde verdade e objetividade foram completamente relativizados?
Rorty  Não há uma função para o tipo de filosofia que Descartes sugeriu que devíamos conduzir. Mas acho que sempre haverá a necessidade de intelectuais que tentem fazer a ponte entre o novo e o velho. Sempre haverá pessoas chamadas de filósofos na falta de um termo melhor.

Folha — Mas não haveria o risco de um vasto cinismo das idéias numa cultura em que conceitos como verdade e objetividade foram submetidos a um extensivo relativismo?
Rorty — É certamente uma possibilidade, mas o medo do cinismo também já estava presente nos séculos 17 e 18, quando os intelectuais estavam começando a secularizar a cultura. As pessoas pensavam que, sem as crenças religiosas tradicionais, o cinismo ia tomar conta. Estavam errados. Os intelectuais foram bem-sucedidos em secularizar a cultura sem produzir cinismo. Por analogia, espero que possamos nos livrar da metafísica e, ainda assim, evitar o cinismo.

Folha — O sr. trata de questões prioritárias também para filósofos de uma linha completamente diferente da sua, como os franceses Michel Foucault e Gilles Deleuze. Como o sr. vê a filosofia francesa pós-sartriana?
Rorty  Dos filósofos franceses que apareceram depois de Sartre, acho Derrida o mais importante. Ele tem o pensamento mais original e funciona muito bem dentro da tradição de língua inglesa da filosofia da linguagem contemporânea. Também admiro dois pensadores franceses mais recentes, Bruno Latour e Vincent Descombes, que escreveram contra a própria idéia de pós-moderno, contra os livros de Lyotard.

Folha — Por que o sr. é contra a idéia de pós-moderno?
Rorty  Acho que a noção de pós-moderno não tem qualquer utilidade. É mais uma tentativa artificial de sugerir que recentemente passamos por algo dramático e importante. Não acho que o século 20 faça essa passagem entre o moderno e o pós-moderno. Muito tempo e energia estão sendo gastos na reflexão sobre o tópico do pós-modernismo.

Folha — O sr. aceita o rótulo de filósofo pós-analítico que lhe é atribuído?
Rorty  Não tenho certeza. Creio que continuo sendo um filósofo analítico porque discuto muitos dos tópicos que foram discutidos por filósofos analíticos. Tenho a tendência a ficar nervoso com o termo pós, que me parece excessivamente usado.

Folha — O sr. chegou a dizer que não acreditava mais na possibilidade de uma filosofia analítica hoje...
Rorty  Acho que é um tipo de filosofia perfeitamente correta, não acho que seja impossível. Muito da filosofia analítica se tornou extremamente enfadonho, mas isso é uma outra questão. Há filósofos analíticos contemporâneos como Putnam e Davidson que, embora não sejam originais como Derrida, continuam fazendo importantes contribuições.

Folha — O sr. escreveu sobre o conceito de mente (mind) de uma forma original e inovadora dentro da perspectiva filosófica. O que o sr. pensa do trabalho recente de neurobiólogos como Gerald Edelman? Eles podem mudar alguma coisa nas ciências humanas e na filosofia?
Rorty  Não li muito de Edelman. O que li não me sugere que ele estabeleça qualquer relação com as questões que preocupam os filósofos. Não acredito que entenda bem o que os filósofos vêm discutindo.

Folha — O sr. também escreveu sobre a "filosofia da solidariedade". Poderia explicar qual o sentido do conceito "solidariedade" no seu trabalho?
Rorty  Não significa nada muito técnico. A idéia é que, se você abre mão de Deus, da idéia da verdade como uma representação exata e da natureza intrínseca da realidade, não sobra nada além das práticas sociais humanas em que você possa se ancorar. O termo solidariedade é apenas uma maneira de sugerir que nós, humanos, só podemos contar conosco e não podemos procurar a salvação fora das práticas sociais.


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