terça-feira, 10 de agosto de 2010

O FENÔMENO DA TRANSFERÊNCIA EM FREUD

O fenômeno da transferência foi considerado por S. Freud, inicialmente, como uma
interferência no processo da associação livre, adquirindo gradualmente um lugar central
na teoria e na prática psicanalíticas. Laplanche e Pontalis (1986: p.668) definem este
fenômeno como: "[...] o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre
determinados objetos [...] na relação analítica".
Em princípio, Freud refere-se à transferência como uma falsa conexão,
associando-a a um obstáculo no trabalho de rememoração. Mais adiante, passa a vê-la
como aliada: "A transferência, destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise,
converte-se em sua mais poderosa aliada quando se consegue detectá-la a cada
surgimento e traduzi-la para o paciente" (FREUD, 1969 [1905]: p. 111).
Sendo um subproduto da neurose, a transferência é capaz de opor uma forte
resistência ao trabalho analítico, uma vez que este mobiliza conteúdos inconscientes
ligados a fixações infantis. Por outro lado, quando bem identificada e manejada, a
transferência torna-se reveladora destes conteúdos.
Em 1914, Freud introduz a idéia da compulsão a repetição que, na transferência,
substitui o impulso a recordar: "Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e
repete sob as condições da resistência" (FREUD, 1969 [1914]: p. 198). É através do
manejo da transferência que a recordação será possível:
[...] o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à
repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da
transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade útil,
concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido. (FREUD,
1969 [1914]: p. 201).
Ressaltados estes aspectos, vejamos como Reich valorou e trabalhou este
fenômeno em sua prática clínica.
O FENÔMENO DA TRANSFERÊNCIA EM REICH
Wilhelm Reich dedicou especial atenção à transferência, desenvolvendo a partir da
Psicanálise Freudiana, a técnica denominada Análise do Caráter, que enfatiza a
importância do psicoterapeuta, sistematicamente, interpretar para o paciente a forma de
suas comunicações, trabalhando com os elementos não verbais da linguagem.
Para Reich, através desta tradução sistemática da forma de ser do paciente, esse
pode conscientizar-se de suas características defensivas. Na relação transferencial, o
terapeuta tem a possibilidade de encontrar, de forma explícita e clara, a expressão do
caráter do paciente e manejá-la. Como já assinalava Freud, a transferência "[...]
representa uma doença artificial que é em todos os pontos acessível à nossa
intervenção." (FREUD, 1969 [1914]: p.201)
Na Análise do Caráter, através do manejo da transferência, o psicoterapeuta
busca afrouxar os mecanismos de defesa do paciente. Como conseqüência,
freqüentemente, há o despertar de atitudes negativas para com o analista, as quais
devem ser também interpretadas. Segundo Reich:
Se as atitudes depreciativas, críticas e negativas para com o analista são
tornadas completamente conscientes desde o início, a transferência
negativa não é reforçada; pelo contrário, é eliminada e então a
transferência positiva aparece de modo mais claro. (REICH, 1995 [1933]:
p.127)
Neste contexto, Reich enfatiza a necessidade de interpretar-se a transferência
negativa latente que aparece na fase inicial do tratamento, frequentemente camuflada por
comportamentos como delicadeza, cooperação, indiferença. Conforme aponta: "[...] não
há transferência positiva genuína no começo da análise, nem pode haver, devido à
repressão sexual, à fragmentação dos empenhos libidinais de objeto e às restrições do
caráter." (REICH, 1995 [1933]: p. 124).
Quando Reich, em 1933, descreveu sua forma de lidar com a resistência, através
da Análise do Caráter, não trabalhava ainda com nenhum tipo de intervenção somática.
Com a introdução de técnicas corporais em sua prática clínica, observou que afloravam
emoções, manifestações vegetativas e conteúdos recalcados. A partir destas
observações, Reich constatou que, é também no corpo, ou melhor, na couraça muscular,
que os conteúdos recalcados ficam aprisionados. Assim, definiu a couraça como o
componente somático do mecanismo de defesa do ego. Desenvolveu então, uma
série de intervenções somáticas com a proposta de afrouxar estas couraças, para que a
energia pudesse voltar a fluir livremente.
Com isto, as autoras consideram que surgiram novos elementos e questões
específicas, relacionados ao manejo da dinâmica transferencial.
AS INTERVENÇÕES CORPORAIS E SUAS IMPLICAÇÕES NA
TRANSFERÊNCIA
A introdução das técnicas de intervenção corporal no setting terapêutico, suscita
frequentemente, questões como por exemplo:
? A intervenção corporal precipitaria o surgimento da transferência?
? É possível dizer que as intervenções somáticas estimulariam a transferência
erótica?
? Seria a palavra mais asséptica do que a intervenção corporal?
? Haveria um aumento da carga energética devido a utilização de
intervenções somáticas, com repercussão na transferência?
Pretende-se, através destes e de outros questionamentos, analisar algumas
peculiaridades na relação entre a utilização das técnicas de intervenção corporal e a
dinâmica transferencial, propondo-se uma reflexão a respeito.
Destacamos, dentre os principais elementos característicos do setting terapêutico
reichiano, a possibilidade do uso de "técnicas ativas" através da proposição, pelo
psicoterapeuta, de actings e vivências corporais, podendo haver contato corporal entre
este e o paciente, por intermédio do toque, muitas vezes presente.
A utilização destas "técnicas ativas", pode acarretar tanto gratificações quanto
frustrações de demandas inconscientes do paciente.
Cabe lembrar que o trabalho corporal objetiva atingir o conflito inconsciente
gerador de angústia, não a satisfação de demandas. Neste percurso, o paciente pode
até experimentar uma sensação de alívio ou de satisfação, temporários, caso o trabalho
ajude a reduzir a intensidade de um sintoma. Assim, podemos mesmo gratificar,
indiretamente, alguma demanda, como por exemplo, o alívio de uma dor de cabeça
através de um acting ou de uma massagem, mas o objetivo não é este. Conforme
Weinmann et al. (1999, p.21): "Ao operar sobre as construções defensivas no corpo, a
orgonoterapia visa a remeter o paciente para a angústia que lhes subjaz, afim de que seja
elaborada". Neste sentido, o alívio pelo alívio de nada adianta.
A partir de uma hipótese de trabalho, o psicoterapeuta propõe o trabalho corporal
com o objetivo de aumentar a percepção do conflito.
[...] a atividade é conscientemente dirigida pelo terapeuta no sentido da
elaboração do conflito inconsciente – de sua resolução simbólica - , o que
envolve a não gratificação da demanda transferencial do paciente – e
muito menos a do terapeuta (abstinência). [...] faz com que recaia sobre o
terapeuta toda a responsabilidade pela condução do processo.
(WEINMANN, 1999, p.20)
Por outro lado, no trabalho de maternagem, há uma gratificação proposital de
demanda, com o objetivo específico de que o paciente experimente o que lhe faltou. A
experiência desta gratificação, trabalhada e elaborada juntamente com o psicoterapeuta,
auxiliaria o paciente a recuperar a capacidade de buscá-la e recriá-la em sua própria vida,
de maneira autônoma.
A proposta, pelo psicoterapeuta, do trabalho corporal, presente no rol das "técnicas
ativas", contrariando algumas críticas, pode inclusive frustrar demandas de
gratificação, uma vez que a escolha deste tipo de intervenção não se dá de acordo
com as expectativas do paciente. Sendo assim, até mesmo a não escolha do trabalho
corporal ("não-toque"), pelo psicoterapeuta, pode ser vivida pelo paciente como
frustração, suscitando, por exemplo, fantasias de rejeição.
Uma vez que as técnicas sugeridas são de conhecimento somente do
psicoterapeuta, outro elemento a ser ressaltado diz respeito ao possível reforço do lugar
do "sujeito do suposto saber". Dependendo de como estas técnicas são propostas, poderá
haver o reforço do lugar do psicoterapeuta como o daquele que detém o conhecimento.
Por outro lado, tratando-se de uma relação, o reforço deste lugar dependerá também, e
principalmente, das fantasias internas do paciente.
Assim, a subjetividade de cada paciente vai influenciar nos possíveis efeitos do
trabalho de intervenção somática, e deve ser levada em conta durante todo o tempo. É na
relação transferencial que estes efeitos revelam-se, e é na leitura e manejo adequados
destes efeitos que encontramos a força terapêutica.
Manejar adequadamente os conteúdos transferenciais é o maior desafio que nos
espera como profissionais, uma vez que o setting psicoterapêutico é altamente
libidinizado, e estamos incluídos na rede de canais que se abrem através deste encontro.

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